25.8.04

 

Meditação Euro-Lusíada



Há uns meses, numa troca saudável de opiniões divergentes, neste meio internético, fui levado a escrever um texto de reflexão sobre a importância do nosso passado histórico. Por me parecer, sem presunção o afirmo, que o texto e o tema mantêm inteira actualidade, na controversa conjuntura político-cultural que atravessamos, vou reeditar aqui grande parte do texto então elaborado, introduzindo nele apenas alterações pontuais de carácter introdutório ao tema abordado.

Como é comummente sabido, a individualização cultural dos diferentes povos europeus tem sido um assunto amplamente debatido, por vezes em ambiente de forte exaltação, por numeroso escol de pensadores, sobretudo, a partir da fervilhante época do Romantismo.

A recente ampliação da União Europeia, feita sem que se tivesse atingido uma plena consolidação da situação anterior, convictamente assumida pelos 15 estados-membros, ao contrário do que muitos crêem, longe de vir anular o interesse dos temas identitários dos povos da União, mais haverá de o estimular daqui para a frente, dadas as complexas reacções políticas e culturais que esta apressada ampliação virá, mais cedo ou mais tarde, a desencadear.

E tanto mais, quanto mais as pardas entidades burocráticas de Bruxelas, com a sua empolada corte de prebendados servidores, persistirem em apoucar as reacções que advirão da sua precipitada decisão, desacompanhada, como de costume, da reflexão e do assentimento da esmagadora maioria dos povos da União.

Evocando Rousseau, no seu famoso Contrato Social, poderemos também dizer que só quando todos abdicam de algo, em favor de um bem, reputadamente maior, é que ninguém fica a perder. Na actual conjuntura da U.E., questionam-se de imediato dois aspectos fundamentais desta magna associação: o facto de todos abdicarem igualmente de algo e o valor maior, que, em troca, se obtém ou obterá no futuro com este grande contrato, aparentemente celebrado a contento geral.

Do primeiro ponto, logo muitos duvidam da verdadeira igualdade da comum cedência ; no segundo, acredita-se ainda, embora já com menor convicção do que no início da adesão, visto que o alargamento de 15 para 25 membros desviará ajudas e incentivos da U.E. para os novos estados-membros do Leste, debilitados pela sua vivência anterior em regime socialista fortemente anti-democrático. Deste desvio, sairão obviamente prejudicados os estados até aqui mais beneficiados em fundos comunitários, à cabeça dos quais figura Portugal.

Com a polémica da eventual Constituição da U.E. prevalecente sobre as dos estados-membros, agravada ainda pela anunciada atribuição de direitos especiais a alguns deles, é de admitir, que os temas das identidades culturais, do passado histórico, da soberania e afins, venham a ganhar novo interesse, acrescido pelas aceleradas modificações na composição étnica e cultural dos actuais países da U.E.

A forte pressão sob que estes se encontram, da parte de povos de outras origens e credos, fugidos da miséria económica e das tiranias políticas de regimes que os esmagam, eternizando essa mesma miséria, ao mesmo tempo que os doutrinam na base do ressentimento e do ódio à contrastante prosperidade ocidental, sempre apresentada como responsável do seus intermináveis infortúnios, acabará por gerar a explosão de conflitos de base religiosa ou étnico-racial, muito difíceis de enquadrar, como já se pressente, mesmo em ambiente de relativo desafogo económico geral.

Com este militante e nocivo sentimento de animosidade de povos desprovidos, especialmente os dominados pela agressiva mentalidade do fundamentalismo islâmico, se acham confrontados, quer o reconheçam ou o ignorem, os hodiernos povos europeus, estranhamente desafectos dos seus próprios valores e méritos, demonstrados ao longo de séculos de confrontação e de competição, de balanço, para si próprios, largamente positivo.

Muito surpresa nos reservará ainda a continuada pretensão de reduzir todos os problemas sociais a meras questões de promoção de bem-estar económico.

No que se segue, procurarei expender algumas ideias sobre a importância dos aspectos culturais do passado histórico das comunidades em geral e, em particular, da comunidade individualizada que, nós outros, Portugueses, formamos, desde há quase novecentos anos ricos em acontecimentos, que ajudaram a edificar a nossa personalidade singular como povo em convívio com os demais.

Qualquer que seja o interesse ou a curiosidade que a este assunto dediquemos, no caso presente, trata-se do nosso vero Património Histórico, algo que herdámos, comum legado recebido das gerações que nos precederam, no local em que nascemos ou nos foi dado viver.

Da mesma forma que atribuimos importância ao que a nossa família nos transmitiu : a educação, a instrução, o conforto, os bens, muitos ou poucos, as tradições, etc., assim deve acontecer com o que nos legou uma outra espécie de família mais alargada – a Nação – a que nos ligam laços de afecto cimentados na partilha de ideias e sentimentos específicos, cultivados ao longo de séculos de convivência comum. A isto se chamava, in illo tempore, o fundamento das Nações.

Por isso nos aproximamos, nos juntamos e celebramos acontecimentos particulares, a que os demais povos permanecerão indiferentes, por nada lhes dizerem, nem no plano cultural, nem no sentimental ou afectivo, uma vez que lhes foram alheios, neles não participaram ou até eventualmente a eles se opuseram.

O mesmo sucederá connosco em relação aos deles. Não há aqui nada de xenofóbico ou segregacionista, mas tão só a comprovação de uma realidade que fomos colectivamente construindo, conhecendo, por termos feito uma aprendizagem da cidadania no seio de uma cultura particular, no nosso caso, a portuguesa.

Este valioso património, o português, em particular, contém trechos brilhantes, pelos feitos que a história registou, com figuras que se destacaram na época, em que também havia competição entre os estados, as nações e entre os indivíduos, como todos reconhecerão, apenas assumindo então uma feição diversa da do presente.

Certamente que não foi por acaso que os Portugueses se distinguiram nesse tempo, na epopeia marítima, nos séculos XV e XVI, sobretudo, e não os Franceses, Ingleses ou Holandeses, que não estariam por certo distraídos, mas tão-só não lograram adiantar-se no empreendimento marítimo, o qual exigia igualmente suporte científico e técnico, de que nós, portugueses, não estaríamos, ao tempo, desprovidos.

É sabido que, na ciência náutica da época, Portugal se encontrava a par dos maiores avanços técnicos, quer na cosmografia, quer na cartografia, quer ainda na construção naval, dotado de uma elevada perícia na manobra das embarcações, pelas frequentes viagens praticadas, primeiro ao longo da costa africana e depois, mais ao largo, no grande mar oceano, que nos levaria à Índia, ao Brasil, à América do Norte e ao extremo Oriente.

Tudo isto é sabido, mas deve ser hoje valorizado, por constituir um activo precioso na história de qualquer nação. Só nesse sentido deve ser usado, i.e., como elemento catalisador de novas aventuras, no domínio da Ciência, das Técnicas, das Letras ou das Artes, consoante a nossa sensibilidade e a nossa capacidade o permitirem.

Não há nenhuma incompatibilidade de base, nem nenhuma incapacidade inata dos portugueses para qualquer destes campos. Tudo depende da forma como nos soubermos preparar, organizar e aplicar, para empreendermos as tarefas do futuro, as que nos podem fazer recobrar a auto-estima abalada por longos anos de criticismo exacerbado.

Bem sabemos que hoje os ideais colectivos andam subalternizados aos individuais, mas, mesmo no âmbito pessoal, é sempre possível contribuir para qualquer coisa de maior ou de mais elevado. É preciso ver mais alto e mais longe, para além do nosso quintal.

As diversificadas esferas de actividade por que repartimos as nossas vocações e atenções não devem ser vistas em contraponto umas com as outras e uma Nação não deve queixar-se dos heróis que teve ou não teve nas áreas que numa dada época lhe parecem mais importantes. Deve, sim, aproveitar os que tem, procurar emulá-los, nos campos que se lhe afigurem mais propícios, atractivos ou em que se ache mais carenciada.

Não faz sentido contrapor Newton a Vasco da Gama. Cada um fez o que fez, de acordo com a formação que recebeu, a inteligência que tinha e os ideais em que inseriu a sua acção. Os ingleses têm todo o direito a orgulhar-se do seu grande génio da Ciência, como os portugueses se devem orgulhar igualmente dos seus heróis, quer tenham sido navegadores, quer tenham atingido notoriedade noutras áreas, como Pedro Nunes, por exemplo, no seu tempo, tão distinto na Ciência como os seus pares europeus.

Também não devemos falar do país, como se de uma entidade alheia se tratasse. É, antes, qualquer coisa que nos diz profundo respeito, mesmo se não nos sentimos bem representados na sua condução presente. Está ao nosso alcance fazê-lo melhor, lutar para que ele se transforme no sentido que nos pareça mais conveniente, proveitoso, para o fazer progredir.

Afinal, para que queremos um sistema democrático, se nos desinteressamos de o aperfeiçoar, se apenas o criticamos e nada queremos fazer para o melhorar ?

Se todos pensarem que a solução é emigrar, isso equivale a uma deserção colectiva. Desistimos de lutar, baixamos os braços e damo-nos por vencidos, ainda mesmo sem termos lutado.

Estou em oposição a esta atitude que reputo demissionista. Até os grandes críticos portugueses do século XIX, da chamada Geração de 70, lutaram, cada um à sua maneira, para arrancar Portugal ao seu atraso. Um deles, o Oliveira Martins, chegou mesmo a desempenhar funções de Ministro no Governo, para contribuir para o progresso do seu país, abandonando por momentos a cómoda tarefa de crítico dos costumeiros desacertos governativos.

O próprio Eça, porventura o mais acerbo, com maior potencial destrutivo nas suas investidas críticas, pela finura de estilo, acutilância e robustez da sua argumentação, ampliada pela vasta simpatia pública conquistada, parece ter-se apercebido dos efeitos nocivos dessa crítica demolidora, vindo no final da vida a adoptar uma atitude mais moderada e compreensiva da realidade que, com a sua intervenção, pretendia alterar.

Porque é preciso sempre alguma contenção na crítica, ter a noção de que se pode estar a cometer excessos e a prejudicar a própria entidade que se deseja melhorar. Da mesma forma que, depois de uma sova desmesurada, o que foi objecto dela pode ficar tão desconjuntado que já não admita reabilitação.

De muita desta crítica ainda não recuperámos, creio eu, tal o seu efeito devastador no corpo da Nação. Para agravar as coisas, o longo período da Ditadura habituou muita gente a exercer a crítica quase de uma forma automática e a coberto de uma posição, à partida, assistida de razão, por falta de legitimidade formal do regime contra o qual ela se dirigia.

Mas se Salazar era Ditador, por exercer o poder de forma autocrática, por não acreditar no sistema democrático, representativo, parlamentar e preferir soluções autoritárias, típicas de um auto-persuadido déspota iluminado; se abusava até da própria autoridade que o regime, por si mesmo engendrado, lhe conferia e, com isso, despertou, nos portugueses que se lhe opunham, o desejo de instaurar um regime plenamente democrático, de liberdades individuais garantidas na lei, não se segue daqui que tudo o resto que ele cultivava ou advogava deva ser rejeitado ou tido por abominável.

A sua proverbial probidade, hoje quase escandalosa, o seu acrisolado patriotismo ou nacionalismo não deveriam ter sido desprezados, como o foram, porque são valores em si mesmos, independentemente de quem os apregoa ou pratica ou dos ideais em que acredita.

Todos os demais povos têm, em maior ou menor grau, este sentimento nacionalista entranhado na sua formação e não vejo por que razão os portugueses o devam rechaçar, se isso tem um efeito agregador na comunidade, capaz de lhe comunicar um ânimo propulsivo nas múltiplas tarefas que essa comunidade houver de empreender.

Também não há motivo para ter medo dos termos. Ser nacionalista não é ser fascista, nem é pretender esmagar ou combater as outras nações, mas tão-só amar a sua Nação e querer afirmá-la, pelos seus valores de civilização e de cultura, no conjunto alargado das outras nações, não para as guerrear ou odiar, mas para delas merecer o seu respeito e consideração.

Naturalmente que neste propósito se inclui a disponibilidade para defender a nossa Nação, com risco da própria vida, se acaso contra ela outros atentarem, como sempre fizeram os povos dignos em todas as épocas e, ainda hoje, suponho, solenemente continuam a jurar, em cerimónia pública, todos os mancebos que entram nas fileiras das Forças Armadas.

Em que é que isto conflitua com os ideais democráticos de cada um ?

Sem sentido de comunidade, só existem êxitos individuais, desgarrados e enfraquecidos no seu simbolismo, pouco contribuindo para a elevação desse corpo mais vasto a que pertencemos.

Quanto à defesa da Língua, a verdadeira Pátria, no pensamento complexo, profundo, mas sumamente original de Fernando Pessoa, é mais um dos aspectos em que se traduz o respeito pelo património herdado. A Língua Pátria é muito mais que um mero instrumento de comunicação entre indivíduos. Nela se encontram vazados profusos elementos da nossa aventura colectiva no mundo, além de ser a Língua, ela própria, um objecto de actividade artística, como a Pintura, a Escultura, a Arquitectura, a Matemática, etc., podendo ser enobrecida ou degradada, pelo bom ou mau uso que dela fazemos.

Para terminar, peço desculpa se, ainda que involuntariamente, melindrei sensibilidades alheias, diversas da minha, e se, porventura, me repeti nalguns pontos aqui focados, num tema que partilha múltiplas afinidades com os de outros textos aqui publicados. É inevitável alguma repetição, quando tratamos de temas matriciais da nossa personalidade como povo.

Declaro com lisura que não pretendo converter ninguém aos meus pontos de vista, que, naturalmente, são discutíveis, como quase tudo na vida ,aliás, ainda mais em assuntos de natureza não científica.

Desejo apenas com estas intervenções contribuir para o esclarecimento, espero, de temas que, a meu ver, andam mal abordados ou abordados de uma forma unilateral, desequilibrada, por vezes mesmo preconceituosa, nos diversos meios da Comunicação Social, largamente dominados pelo esterilizante pensamento «politicamente correcto», autêntica praga dos nossos dias.

Sinceramente creio na convivência pacífica entre os povos, sob o acatamento comum de regras e normas de respeito há muito estabelecidas. Acredito que os indivíduos podem melhorar a sua sorte, de uma forma individual e colectiva, sendo que esta última completa e amplia o sentido da primeira.

E, para isso, é muito importante valorizar e enobrecer, acrescentando ou aperfeiçoando, o património físico e cultural recebido das comunidades em que nascemos ou escolhemos viver.

Eis, em resumo, o sentido de toda a argumentação atrás desenvolvida. Oxalá o haja atingido.

Os pacientes leitores internautas que aqui eventualmente aportarem que o julguem e desejavelmente o manifestem.

Outra vez «Navegar é Preciso» .

Gutta cavat lapidem.

António Viriato – Óbidos, 25 de Agosto de 2004
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19.8.04

 

Efemérides da Pátria e a Democracia

A passagem de mais um aniversário da grande batalha de afirmação dos Portugueses, em face dos seus vizinhos, então inimigos, Castelhanos, suscitou algumas breves referências na Comunicação Social. Em quase todas elas, porém, é notória uma preocupação em suavizar os termos e o alcance do significado da confrontação, que haveria de consolidar, por muitos anos, a soberania portuguesa, claramente vincada na completa vitória das suas armas.

Muitos já celebraram esse magnífico feito, que Camões, mais que todos, de forma sublime, largamente tratou no Canto IV d’ Os Lusíadas, numa vintena de estrofes lapidares, que os alunos do antigo Ensino Secundário – obrigatoriamente – teriam de ler e comentar, para lograrem aprovação no exame de Português do seu exigente 2º Ciclo curricular.

Costumam os mais cépticos, supostamente de mentalidade evoluída, cosmopolita, desvalorizar estes temas, sob o pretexto de que eles hoje pouco ou nada contribuem para a nossa moderna orientação como Comunidade, mais apostada em alcançar crescentes níveis de conforto material, ainda que a troco do abandono de uma honrada dignidade, convenientemente esquecida ou subalternizada, sobretudo se a manutenção dessa mesma dignidade implicar sacrifícios ou comportar a assunção de determinados riscos, incómodos, como soem ser, desde sempre, os riscos e os sacrifícios da vida.

Da mesma forma como progressivamente deixámos de comemorar o 1º de Dezembro de 1640, transformado em mais um oportuno dia feriado, sofregamente gozado, em particular na nova era democrática pós-25 de Abril, também nos fomos alheando do valor simbólico do 14 de Agosto de 1385, obliterando o significado profundo de ambas as datas, intimamente ligadas no trajecto histórico dos Portugueses.

Dir-se-á que cada época segrega a sua própria mentalidade e a presente elegeu a busca do êxito fácil, do prazer e da comodidade, como objectivos primaciais da sua motivação, a que tudo o resto se deverá subordinar. Assim parece, de facto, não obstante alguns – poucos – teimarem ainda em apontar outras metas e diferente comportamento, invariavelmente, sem êxito na sua tarefa, porque fora do espírito do momento.

Entretanto, para que não se caia em desesperos estéreis, inoperantes, convém lembrar que a Humanidade é já bastante velha e, para aqui chegar, ao encanto de tanta comodidade, passou por períodos extremamente duros, cruéis, bárbaros, bem piores que os actuais, deles se recompondo, umas vezes mais depressa, outras de forma mais lenta, ainda que à custa de acerbo sofrimento e incontáveis sacrifícios.

Custa, por vezes, a crer na espantosa capacidade de redenção, de regeneração e de renovação desta nossa cansada Humanidade, com nítidos sinais de exaustão, que, ao longo do seu já extenso percurso civilizacional, tantas e tão soberbas provas tem dado dessa tão inquebrantável quanto surpreendente vitalidade. Talvez que os erros, os desacertos, os desconcertos, para usar um termo de sabor quinhentista, de certas épocas sejam mesmo necessários a essa, até hoje, permanente renovação.

No presente, em Portugal, porventura mais que em outras partes do mundo, vive-se um período de forte descrença colectiva, que pode ser de mau prenúncio para a vida democrática da Nação. É certo que o enquadramento político extra-nacional, em que nos inserimos, parece consentir um confortável sentimento de amparo democrático, dada a prevalência de sistemas políticos baseados nos princípios da liberdade e da livre escolha dos cidadãos nos actuais países da União Europeia, alguns mesmo com regimes de longa e bem sucedida prática democrática.

Contudo, a existência de um sistema formalmente democrático não é, nem nunca foi, garantia de desenvolvimento e coesão das respectivas sociedades, como tantos exemplos no-lo evidenciam por esse mundo fora. Em muitos lugares, o sistema democrático ficou cativo de supostas elites ou grupos de pressão, que, por via dos seus excessivos privilégios, conseguem influenciar e mesmo determinar as opções políticas dos responsáveis governativos, apesar da obrigação destes em atender aos interesses maioritários e superiores da comunidade que os elegeu.

Parece ser esta a grande ameaça aos actuais sistemas democráticos representativos : a multiplicação dos poderes fácticos, eximidos ao controlo democrático, mas carregados de elementos de sedução, pelos privilégios que concedem a quem deles se enamora, vai progressivamente condicionando a actuação dos Governos e demais instituições, na sua origem de base democrática, porém cada vez mais distantes, no seu ideário e, sobretudo na sua prática, da raiz democrática que os gerou.

O presente descaso da comemoração e do culto das efemérides da Pátria, aparentemente desligado do contexto da desilusão com o sistema democrático, reflecte antes a debilitação geral das comunidades nacionais, que, por este rumo, se vão paulatinamente de si mesmas alienando, na busca incessante de sucedâneos da sua verdadeira vocação, ficando por isso completamente à mercê das artes, mais ou menos habilidosas, dos demagogos que se sucedem no poder, por elas, na verdade, legitimado.

É, por conseguinte, imperioso trabalhar para a inversão desta tendência, fazendo uso de todos os mecanismos e recursos do sistema democrático, procurando despertar o sentido cívico dos cidadãos eleitores, inculcando-lhes a noção da sua forte responsabilidade na condução das suas comunidades, sob pena de cairmos numa apatia social cada vez mais deprimente, desesperante e perigosa, de onde, aliás, costumam emergir os monstros atávicos adormecidos nas nossas consciências.

António Viriato – Óbidos, 19 de Agosto de 2004

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